Nuvem carregada de gente desaguando em terra

por Coletivo Adiante
Texto: Camila Bahia Braga
Fotos: Vinícius Rezende

O bloco Filhos de Tcha Tcha no carnaval de 2015 foi, de longe, a maior experiência carnavalesca que eu já vivi – mas a dificuldade em escrever esse texto reside exatamente no fato de que isso aqui não é sobre mim.

A potência daquela segunda-feira não estava nos olhos de quem via, mas no acontecimento em si. O bloco Filhos de Tcha Tcha era, por si só, um hino, o grito de guerra, uma caminhada com muito mais bandeiras do que os estandartes conseguiriam desenhar. Pela moradia, pelo direito de existir, residir e resistir; pelo direito de ocupar, de construir, de ter endereço, correios, posto de saúde, escola e creche. Era o carnaval de rua pisando na terra para provar, mais uma vez, que não há marca de cerveja que coagule o sangue que pulsa ensandecido pelas veias de BH. Não há prefeitura que prive o direito à mistura, às trocas, à alteridade. Não há marca de cerveja nem prefeitura que dêem conta, na verdade, de coibir o que ali acontecia. Mais que uma porção de mulheres e homens juntos, ali tomou corpo a coletividade como um ser vivo, algo a ser visto, ouvido, sentido por todos os poros. O Filhos de Tcha Tcha foi Megazord, foi o maior dos legos, a maior das somas de gente, raça, vontade, acreditares e brilhares que já não sei descrever.

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Em algum ponto do percurso entre Esperança e Vitória, debaixo de toda a água que o céu nos mandava, eu lembro de ter visto uma faixa entre árvores, já enrolada por golpes de vento. Não foi possível ler o que estava escrito, mas na minha mente se alojou que eram boas-vindas. Que do lado de lá, alguéns esperavam a música e a alegria que o bloco havia se proposto a levar.

E ele, é claro, levou. Com lama, chuva, suor, infelizes acidentes, alguma preocupação; mas com uma bateria incansável, com deliciosos banhos de mangueira e copos de água no tempo do calor, depois com espontâneos ‘blocos do quentinho’ fazendo crescer temperaturas, com pés sambando em enxurradas, com abraços anônimos, com cantos de ‘ei, Chapolin, já tá bom’ que faziam sorrir dos tênis atolados até os fios de cabelo ensopados. Se o desafio era chegar, ele foi cumprido em excelência e cheio de essência – qualquer sorriso que se perdia um pouco no caminho logo era encontrado e revivido.

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Ter experenciado aquela chuva entre as ocupações fez pensar – mais uma vez, e para sempre – em privilégios, desigualdades, lugares de fala, lugares de vida. Em condições de sobrevivência e resistência, mas, acima de tudo, na força do coletivo. Nas casas enquanto células que juntas se fazem vivas. Nos moradores como guerreiros que sabem o quanto se precisam, e o quanto se fazem maiores por isso. Em cada pessoa que fez feijão tropeiro, embalou chup chup, colocou cerveja para gelar, soprou trompete, deu tchau pela janela, tocou surdo e caixa e repique, pintou criança, ajudou a descer sem cair, escorregou sem perder a áurea, apitou pulmões afora, sentiu peito adentro; e na experiência mais potente e humana de carnaval que elas – juntas, sempre, e não haveria outro jeito de ser – criaram na vida de muita gente.